A PEDAGOGIA FASCISTA
(OU: DE QUE MANEIRA FOMOS “EDUCAD@S” PELA DITADURA)
1. Há anos, desde pequeno, que vivo fora de Portugal. De maneira que, sempre que passo algum tempo em Lisboa, procuro estar com muita atenção a tudo o que acontece por estas terras. Sem querer, a gente compara, mede, pesa... e analisa! Gosto de fazer sociologia do quotidiano, observando o dia-a-dia, o que acontece nas ruas e com as pessoas.
Gosto também de ver as montras das livrarias, mas reconheço que o faço ultimamente cada vez mais por cima. Mas, das últimas vezes, chamou-me muito a atenção ver à venda uns livros de leitura da primeira, segunda, terceira e quarta classes... “de antes”!
Ou seja, mesmo do tempo da
Dita-dura salazarista!
Interroguei-me então porque é
que estes livros ainda se vendiam e continuavam a ser mostrados em montras.
Supostamente, a Dita-dura passou (?). O próprio livreiro disse-me, todo
contente, que estavam a vender-se bastante... (Como quem diz: “Aquilo é que
eram livros de escola!”).
Ao princípio, não os comprei.
Mas, aos poucos, foi-me entrando o “bichinho” da curiosidade, aquele “bichinho”
que levava a recordar aqueles tempos de ensino de criança. (Quando acabei a
quarta-classe e o exame aos liceus, já estava a viver em Espanha). Talvez
pudesse encontrar nesses livros alguma coisa de interessante que explicasse a
minha infância...
2. Uma das últimas vezes que estive em Lisboa, a penúltima, em 2006, decidi finalmente fazer
um estudo mais a sério, um estudo pedagógico, analisando esses livros. O
objectivo era mais sociológico, o que poderiamos incluir dentro de estudos
formais de sociologia do conhecimento.
A pergunta da investigação
pessoal era: como aparecia a ideologia fascista nuns livros de texto tão aparentemente
inocentes, escritos para crianças de seis, sete, oito ou nove anos? Noutras
palavras, como é que nos “educaram” (ou nos “amestraram”), como é que foram
“fazendo a nossa cabeça” (como dizem no Brasil) para que a Dita-dura nos
parecera algo de normal e até positivo? Como nos incutiram os “valores”
fascistas na nossa vida?
Com estas perguntas, fui à
Biblioteca Nacional do Palácio das Galveias e pedi os livros escolares que lá
tinham. Dediquei-me então a “estudar” principalmente “O Livro da Primeira
Classe”. Mas também li pacientemente “O Livro da Segunda Classe” e no ano
seguinte comprei até “O Livro da Terceira Classe” (pois tinha conservado “O
Livro da Quarta Classe”): ou seja, trabalhei toda a série!
A continuação faço os meus comentários
a “O Livro da Primeira Classe”[1].
3. Chamou-me imediatamente a atenção a Bandeira Nacional logo na primeira
página. Fica bem claro, desde o princípio, o sentido nacionalista (ou
melhor, patrioteiro) que o ensino das primeiras letras tinha. Também
aparecia a imagem da Igreja logo ao princípio. Era interessante observar a
clareza dos objectivos pretendidos, sem mensagens subliminares,
especificamente. E aparecia uma imagem de uma Família, possivelmente a família
ideal portuguesa.
Um bocadinho mais à frente lá
estava o Mar, a recordar a vocação marítima “do nosso grande Portugal” e a pôr
o acento sobre o aspecto produtivo essencial daqueles anos: a agricultura. Isto
ficava muito presente ao longo de todas as páginas. Para além de uma presença
abundante de Natureza no texto (que até poderia parecer positivo...), estava a
questão de que Portugal, ainda nos anos quarenta (e mais tarde, pois o livro
era o mesmo quando estudei nos anos sessenta) não era um país industrial, mas
agrícola (porquê?).
E não podia faltar também
logo um desenho da Mocidade Portuguesa! Estavam dados assim os eixos sociais em
que se apoiava ideológicamente a Dita-dura.
Inclusive, na página 30,
aparecia um rotundo “Viva Carmona” e, pouco depois, na página 34, logo um “Viva
Salazar”[2].
Eram os rostos, as fisionomias, as “pedras fundamentais” do sistema político
que se tratava de legitimar já desde a mais tenra infância.
4. Também era interessante observar o papel ideológico que a
Religião representava aqui[3].
Por exemplo, no mês de Maio aparecem uma série de meninas (não há
meninos!), a rezar, de joelhos. Será que a religião era só para meninas?
Aqui vemos a religião combinada com o sexismo, tema este último bastante
presente ao longo de todos os textos da Primária.
É “curiosa” também a imagem
de Maria e de um menino, ambos loiros (o “branco” como a imagem perfeita para
apresentar a Divindade). Isto poderia fazer-nos entrar numa interessante
análise de modelos comunicativos que se pretendem mostrar, que aqui só
sublinhamos.
Mais à frente (p.59) volta
outra vez esta associação de “pele branca” com as imagens religiosas
apresentadas (“O Carlinhos era uma linda criança de cabelos louros e olhos
azuis”. Por isso a avózinha podia rezar: “Meu Jesus! Protegei e abençoai o meu
menino. Fazei-o como o pai, obediente à Vossa lei, bom para si e útil à
Pátria”).
Insiste-se numa religião (o
cristianismo) muito sentimental,
sem perguntas de fundo[4].
Por exemplo, há que auxiliar os companheiros, há que visitar os doentes, há que
ajudar os pobres (aparecem várias vezes, mas nunca há uma pergunta do tipo:
“Porque é que existem pobres?”. Supõe-se que isso é resultado do Destino ou da
Vontade de Deus, que no fundo aparecem aqui como sendo a mesma coisa: fatalismo).
Também vem a justificação
religiosa do Poder: “É Deus quem nos manda respeitar os superiores e obedecer
às autoridades”, diz-se na página 75. Excelente! A Religão ao serviço do Poder!
O racismo unido à
religião aparece nesta bela definição do que seremos quando formos mais
crescid@s:
“- E eu, disse a Clarinha, gostava de ser missionária, ir
para muito longe ensinar a doutrina aos pretinhos” (p. 85).
Ou seja, a visão da religião
apoiando o poder colonial: “pacificação” (“doutrina”) das mentes dos
“pretinhos”, para que sejam obedientes às autoridades, sobretudo às
coloniais...
Unida à ideia da Religião
aparece a do respeito absoluto à Ordem Estabelecida:
“Os trabalhos hão de correr bem durante a semana, porque
tôda a gente respeitou o dia do Senhor”(p.88).
Respeitar a instituição
religiosa é cumprir a Vontade de Deus e ter êxito no resto da vida. Ou seja,
uma vez mais, ser obedientes sempre às Autoridades estabelecidas (e Deus é a
primeira delas!), à Lei, às Normas, aos Deveres, ao Estado, à Igreja... Assim
tudo irá bem... para o Sistema!
Até aparece o que poderiamos
definir “A Oração do Fascismo”:
“Abençoai, Senhor, a Vossa Igreja, a nossa Pátria, os
nossos Governantes, as nossas famílias e tôdas as escolas de Portugal”(p. 93).
Será isto tão diferente do
que acontece hoje, na época dita “democrática”?
5. Ha algumas “pérolas políticas” que não podem deixar de ser citadas:
“Perguntei à senhora professora quem tinha feito tanto
bem à nossa escola e ela respondeu-me:
-
Foi o
Estado Novo, que gosta muito das crianças e para elas tem mandado fazer escolas
e cantinas, creches e parques. Mas as famílias que possam também devem ajudar.
Não te esqueças de o dizer à tua mãe”[5]
(p. 69).
No comment!
6. E também “pérolas económicas” importantes:
“O seu a seu dono. Nunca devemos ficar com o que não nos pertence” (p. 73).
Isso mesmo! É preciso começar logo, desde pequen@s, a respeitar a sagrada propriedade privada!
7. O sexismo está claramente presente em todos os textos. Por exemplo, nas imagens: as meninas só aparecem com bonecas. Ou seja, as bonecas são para as meninas, que devem aprender já de pequenas quais serão as suas actividades futuras... Como esta, da perfeita “dona de casa”:
“Emilita é muito esperta e desembaraçada e gosta de ajudar a mãe.
- Minha mãe. Já sei varrer a cozinha, arrumar as cadeiras e limpar o pó. Deixe-me pôr hoje a mesa para o jantar.
- Está bem, minha filha. Quando fores grande, hás de ser boa dona de casa” (p.55).
Por aqui já se vê qual é o ideal de uma boa mulher e esposa, além de “esperta”, para o futuro!
Mostra-se também que uma boa menina é uma menina de “bom coração”, que ajuda as companheiras pobrezinhas. (Como sempre, aparecem muitos pobres ao longo do texto, e sempre há que ajudá-los, mas nunca há uma simples pergunta: porque é que existem pobres?).
Há também uma permanente mitificação sentimental das “mãezinhas”, e do papel que significam a nível educativo familiar.
No seguinte texto, vemos o modelo de família da época fascista:
“- Mãezinha, já pode tirar a sopa. O Paizinho vem aí.
- Vem muito cansado, Paizinho?
- Sim, trabalhei muito e venho cansado. Mas pensava em vós e dizia comigo: - É para os meus filhos que eu trabalho. Deus me ajude a criá-los” (p.61).
O contexto deste texto é precisamente o mundo rural (Portugal como um país feudal). O trabalho da “mãezinha” é na casa e na cozinha. Pergunta: “Para quem trabalha realmente o Paizinho”? Os filhos só têm que obedecer aos pais (e às Autoridades). Assim, tudo funciona perfeitamente no mundo corporativo do salazarismo.
Até aqui O Livro da Primeira Classe.
8. O Livro da Segunda Classe[6] continua nesta mesma linha. Há referências explícitas ao Estado Novo, que mandou construir escolas (p.25). Afirma-se que a Colectividade “é organizada e dirigida pelo Estado, que coordena e assegura a livre exercício de tôdas as actividades necessárias à vida da Nação”(p. 39).
(Claro que aqui se levantam algumas perguntas: O que é que se entende por “livre” exercício? De onde lhe vem ao Estado a legitimidade para organizar e dirigir a “Colectividade”? Quem lhe deu esta missão?)
Neste Livro da Segunda Classe há mais textos literários e uma selecção fortemente nacionalista dos textos, para fazer entrar nas cabeças e corações, já desde pequenin@s, a assim-chamada “Cultura Portuguesa”, ou seja, a visão nacionalista-corporativista da Ditadura salazarista.
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Acho que estes textos citados não necessitam de muito mais comentário político. São suficientemente claros para ser entendidos por si própios. Deixo à inteligência do leitor/a o trabalho para identificar interiormente todas estas questões na sua própria educação, tanto escolar como familiar, e de perguntar-se a si própri@ como é que conseguiu superar esta visão educativa (se é que realmente a superamos, claro...).
rui manuel grácio das neves
nagpur (india)
17.08.07.
[1] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
NACIONAL, O Livro da Primeira Classe. Ensino Primário Elementar,
Papelaria e Livraria Fernandes, Lisboa, 3ª.ed. 1944.
[2] Não se percebia muito bem tecnicamente porque é
que aparecia tão cedo esta aclamação ao “Chefe Máximo”, porque as letras que se
trabalhavam nesse capítulo eram os “eles”: talvez interessava mais o “ele” de
Salazar, do que o “esse” inicial do seu nome, como seria o normal, mas, sem
dúvida, havia outros interesses mais pedagógicos nisto...
[3]
Utilizamos aqui o termo ideologia
no sentido mais originario do termo no pensamento marxiano, como sinónimo de
pensamento invertido, falso, manipulador, ocultador dos verdadeiros intereses
presentes atrás de qualquer texto cultural (ou histórico). Não usamos o termo
num sentido neutro.
[4] “Os pobrezinhos. –Os pobres são nossos irmãos. Devemos
fazer-lhes todo o bem que pudermos. Jesus ensinou que até um copo de água dado
aos pobres por caridade, terá grande prémio no céu” (p.63). O prémio é sempre depois
da morte. Aqui na terra o nosso dever é aguentar com um sorriso nos lábios ou
com resignação, palavra esta consubstancial à de Religião!
[5] Interessante esta expressão final: “Não te esqueças de o
dizer à tua mãe”. O que significa isto? Que as mães são desconfiadas e precisam
de ser “políticamente catequizadas”? Ou que, ao ouvir isto da parte da sua
“criancinha”, ela, a mãe, compreende então perfeitamente que os avanços da sua
“pequerrucha” são devidos à “excelente” acção social do Salazarismo? Seria
assim uma espécie de catequese política familiar, conectando escola e
família com os princípios corporativistas (“as famílias que possam,
também devem ajudar”).
[6] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
NACIONAL, O Livro da Segunda Classe. Ensino Primário Elementar, Papelaria e Livraria Fernandes & Ca.,
Lisboa, 1944.