INTRODUÇÃO À ESPIRITUALIDADE HOLÍSTICA

 

 

rui manuel grácio das neves

 

 

 

 

1. Há um conto espiritual, chamado ‘A busca em lugar errado’, que reza assim:

 

 

“Um vizinho encontrou Nasruddin ajoelhado a procurar qualquer coisa.

 

‘O que é que você anda a procurar, Mullah?’.

 

‘A chave que perdi’.

 

E puseram-se, então, os dois de joelhos, a procurar a chave; e, depois de algum tempo:

 

‘Onde foi que a perdeu?’, disse o vizinho.

 

‘Na minha casa’.

 

‘Oh, santo Deus! Então porque a procura aqui?’.

 

‘Porque há mais luz cá fora’”[1].

 

 

 

        De alguma forma, este conto retrata a nossa atitude mental com respeito à nossa maneira considerada “normal” de focar a realidade e os problemas da vida. Procuramos em lugar errado, devido aos nossos apegos aos hábitos adquiridos. O Passado condiciona a nossa maneira de focar o Presente, o Quotidiano, o Aqui-e-Agora.

 

        Tudo isto tem que ver com o que aqui denominamos Espiritualidade Holística. Mas não é fácil descrever este novo/velho paradigma em pocos minutos. Por isso denominamos somente “introdução” a este trabalho. Quem quiser saber mais ao respeito, poderá consultar a nossa tese de doutoramento em Filosofia, denominada ‘Filosofia de la Vivencia Holística’ (em castelhano), no nosso site: http://espacioinfinito.orgfree.com/index.htm

 

2. Podemos “definir”, brevemente, o ‘Holismo’ como um novo paradigma (ou modelo epistémico) caracterizado pelo acento que põe sobre o Todo. É a procura dum Todo unitário, que dá sentido precisamente às suas “partes”. Ou seja, as partes não são independentes, mas partes de um Todo, fazem referência à Totalidade. As partes têm autonomia relativa, uma identidade relativa, mas, em último termo, não são senão expressões multi-diversas do Único Todo.

 

        Noutras palavras, o Todo é um Um diverso, ou uma Diversidade/Multiplicidade unificada. A Identidade absoluta é o Todo, não as suas diferentes partes (identidades relativas e provisórias)

 

        Além disso, podemos dizer que o Todo está presente em cada uma das suas partes. Uma parte é um Todo diminuto, simplificado. É este o ‘princípio hologramático’, que tanta importância tem na Física contemporânea, na construção de hologramas. É também o mesmo princípio que se aplica em Biologia, quando se quer reconstruir todo um organismo a partir de uma simples célula base desse mesmo organismo (holomorfismo). Isto significa que o Todo não é uma simples soma das suas partes, mas algo mais do que isso. É essas diferentes partes e o conjunto das propriedades interactivas entre todos os seus elementos ou partes.

 

        Isto, que parece tão abstracto, pode-se compreender perfeitamente através de um simples exemplo.

 

        Para entender o que é o modo de produção capitalista podemos estudar densos livros de Economia para captá-lo. Mas basta ir a uma loja da esquina e comprar lá uma simples Coca-Cola. Neste acto de compra num pequeno supermercado do bairro (se é que ainda existem...) estão implícitas essencialmente, ou basicamente, se quisermos, todas as relações fundamentais do chamado modo de produção capitalista: o preço, a relação compra-venda, o dinheiro como meio de troca, a loja, o patrão e as trabalhadoras e trabalhadores, a jornada de trabalho, a concurrência com outras lojas, o processo internacional de fabricação e distribuição do produto, a propaganda, a lógica do desejo e as expectativas criadas pelo produto em questão, etc.

 

        Ou seja, podemos descobrir toda essa lógica capitalista (totalidade) numa simples compra de um produto na loja (parcialidade). De novo, o Todo está presente em cada uma das suas partes.

 

3. O Holismo, contudo, não é um paradigma novo. É muito antigo na história da humanidade. Esta vivência de que a Totalidade é o mais importante à hora de compreender o mundo e de vivenciá-lo, é tão antigo como a história da Humanidade. Modernamente, o que fazemos é tão só esclarecer melhor este processo, captar melhor os seus fundamentos e explicitá-los. Mas, como esquema mental, epistémico, é muito antigo.

 

        Talvez não encontremos todos os seus elementos, conscientemente, em outras filosofias ou modos de pensar, mas aí estão basicamente. Por exemplo, em várias filosofias indianas, como no Advaîta Vedānta (inclusive no Vishishta Advaîta Vedānta). Também no Yoga, no Taoísmo, no Budismo Zen, em diversas místicas e místicos da Kabbalah, do Sufismo e do Cristianismo (como no Mestre Eckhart ou em São João da Cruz).

 

4. Vejamos agora algumas teses fundamentais do Holismo, formuladas em forma de decálogo.

 

4.1. O Holismo parte da experiência de que a Realidade como tal é sempre fluida, dinâmica, nunca é estática. Como dizia o sábio Heráclito: “Nada é, tudo se transforma” (‘paradigma heraclíteo’). O Budismo falará da Lei da Impermanência (anitya). Tudo se transforma. No entanto, postula-se também a Permanência, a ‘quietude’, o ‘repouso’ (‘paradigma parmenídeo’). Mas a Permanência absoluta é inexpressável, apofática.

 

4.2. A Realidade é uma totalidade unitária. Como tal o Todo é Um, Uno. As “partes” são sempre partes de um Todo. O Todo é mais do que a soma das suas partes (porque as inclui a elas e a todas as suas interconexões). “O Todo está (presente) nas suas partes”.

 

4.3. Tudo está em relação com tudo. Tudo é inter-relativo, inter-relacional, inter-conectivo. É o ‘paradigma ecológico’ (defendido, por exemplo, por J. Lovelock: ‘Hipótese Gaia’, a Terra como um Super-Organismo vivo). Nada existe à margem de essa inter-relacionabilidade total.

 

4.4. O Macro dá-se no micro (‘paradigma holográfico o hologramático’). A única diferença é a dimensionalidade. O Macro-micro é uma só coisa. “Como em cima, assim em baixo” (‘princípio hermético’).

 

4.5. O Todo é, ou está, estruturado. Dado que é unitário, integra as diferenças, as quais não são eliminadas, mas sub-sumidas. Trata-se de um Todo “diferenciado”, multívoco (O Uni-verso é Multi-verso). A Multiplicidade e a Diversidade estão integradas e implícitas no Todo. Uno e Múltiple são duas caras da mesma moeda. Ou seja, a Realidade é uma totalidad multi-diversa.

 

4.6. Sendo a Realidade fluida, impermanente, nada é substancial, permanente. Todas as identidades são provisórias, flexíveis, intercambiáveis. É o paradima físico da “dança de Shiva”, postulado pelo físico Fritjof Capra). São identidades “ilusórias”, no sentido em que não são permanentes.

 

4.7. Não há dualidade absoluta entre sujeito e objeto. O/a observador/a é o/a observado/a, e vice-versa (‘paradigma quântico’: o observador afecta o observado). Isto implica o fim do dualismo absoluto epistémico-ontológico. É uma crítica radical ao ‘paradigma cartesiano’. “A Realidade se auto-observa”[2].

 

4.8. O Todo, desde o ponto de vista cognitivo-ontológico, pode ser considerado fenomenicamente e noumenicamente. (utilizando a linguagem kantiana, mas sem nos comprometermos com ela). ‘Fenomenicamente’, a Realidade comporta-se como diferenciada, múltipla, como espacialidade e temporalidade. ‘Noumenicamente’, a Realidade é una. Precisamente, a visão holística consiste em “ver” ambos aspectos inter-ligados, conjugados (‘principio aristotélico’, mas interpretado agora holisticamente). O nouménico dá-se, simultaneamente, no fenoménico, e vice-versa.

 

4.9. Seguindo com a terminologia kantiana, mas noutro contexto epistémico-ontológico, podemos dizer que a mente humana (‘entendimento’, en Kant) só pode captar discursiva-mente os fenómenos. Para captar o Todo com as suas diferenças, ou seja, o ‘noumeno’ com (em) os ‘fenómenos’, compreensivamente, precisa de um acto intuitivo, transcendental (uma espécie de ‘Razão intuitiva’, utilizando paradoxal-mente a terminologia kantiana, evidentemente com outro sentido).

 

4.10. Só que este acto intuitivo (ou intuição originária) não é expressável em conceitos (pensamento discursivo) e está para além da racionalidade comum (analítica), já que esta é verbal. É experienciável, sendo uma experiência pura, originária. Uma experiência não reduzível ao espaço-tempo (melhor seria denominá-la ‘vivencia’[3]). Noutras palavras, o Todo só é captável por intuição transcendental. A racionalidade analítica só observa fragmentos. A captação da totalidade é um processo intuitivo, sintético. É feita de maneira paradoxal, simultânea, espontânea, ruptural (se bem que existem diferentes escolas: umas mais ‘rupturistas’ e outras mais ‘gradualistas’).

 

        Noutras palavras, a vivência holística é uma visão sinóptica da Realidade. É apofática (não se pode dizer ou expressar), mas vivenciável (‘vivência absoluta’), em princípio por e para todo o ser humano[4].

 

5. Vistos estes aspectos básicos da filosofia holística, vejamos agora as suas formulações a nível da Espiritualidade.

 

5.1. Uma Espiritualidade holística (EH) será, portanto, uma Espiritualidade não dual, integrativa. Ou seja, uma Espiritualidade onde cessem os dualismos que contrapõem espiritual e material, mística e ciência, espiritualidade e política (mística e revolução), mente e braço (intelectual-manual), razão e emoção, masculino e feminino (pois é andrógina ou ginândrica).

 

        Há outras dualizações mais trágicas, como a que opõe os privilegiados a nível económico, super-remunerados, àqueles/aquelas (mais elas do que eles, a nível mundial...) super-explorados pelas relações de trabalho capitalistas. Ou os países do denominado “Primeiro Mundo” aos do “Terceiro”, “Quarto”, “Sétimo Mundos”... e por aí afora. Ou dos que têm os seus direitos humanos (mais ou menos) respeitados àqueles que nem têm nem os “direitos animais” reconhecidos...

 

        Pessoalmente, achamos que este é um dos pontos mais importantes da Espiritualidade contemporânea: a tentativa de ir mais além das dualizações mentais, que implicam depois modelos sociais e humanos assimétricos.

 

5.2. Uma Espiritualidade holística é uma Espiritualidade de sadhana pluralista. ‘Sadhana’ é um termo sânscrito que é o equivalente de ‘práctica espiritual’. É sinónimo de método ou disciplina espiritual também. Pode haver diferentes sadhanas dentro de uma EH. A EH não tem um método próprio.

 

        Por exemplo, pode-se ser holista e practicar yoga, Tai Chi, meditação tibetana (várias formas), zazen, oração cristã (diversos modos), sufi, cabalista... Como diz um provérbio hindu, o importante é chegar ao cume da montanha, e não qual é o caminho que utilizamos. Neste sentido, uma EH será uma espiritualidade macro-ecumênica, ou seja, capaz de diálogo interno com todas as tradições espirituais.

 

        Mas não implica necessariamente que seja religiosa. Pode-se ser holista e praticante de alguma das diferentes religiões históricas. Mas não necessariamente. Podemos ser ateus e agnósticos e ainda assim sermos pessoas “espirituais”. Isto seria um tema para desenvolver, mas, em princípio, achamos que isto deve ser possível.

 

5.3. Uma EH será, necessariamente também, uma Espiritualidade de trascendência do ego. O ego é uma construção social, mas que é internalizada essencialmente pelos seres humanos. O perigoso é a nossa identificação com o ego. Nalgumas grandes tradições espirituais há quem fale do “pequeno ego” e do “grande Ego”.

 

        A virtude fundamental de uma EH é integrar o pequeno eu (o eu limitado e individal) no Ego universal (Deus, Todo, Cosmos, Absoluto..., segundo as diversas concepções).

 

        Mas os egos também podem ser colectivos (Pátria, Partido, Religião, Género, clube, etc.). Valem só relativamente, não podem nem devem ser absolutizados.

 

        No momento em que somos vivencialmente conscientes de que o ego é o conjunto do nosso passado, uma acumulação de experiências, ideias, sentimentos, etc., então estaremos preparados/as para não mais “levá-lo ao pé da letra”. O ego é só uma metáfora que se auto-trascende. É preciso não se atar a uma metáfora.

 

5.4. Importante também na EH é a corporalidade. Isto significa que o corpo também é Espiritualidade. Neste sentido, actividades como o Hatha-Yoga, o Yoga psico-físico, são essenciais no sadhana espiritual.

 

        O corpo não é um lastro a ser evitado ou obviado. Pelo contrário, a EH é a expansão da corporalidade ao máximo. Trascender até os sentidos considerados “normais”, para alcançar experiências parapsicológicas. Mas isto não é um fim em si mesmo. Porque pode-se converter numa projecção do ego, e então ser um perigoso desvio no caminho espiritual.

 

        O corpo não é só o nosso corpo físico. É também o corpo social e o corpo cósmico. De alguma forma, somos o Corpo Cósmico e poderiamos parafrasear o humanismo clásico dizendo que: “Somos o Cosmos e nada do Cosmos nos pode ser alheio”

 

5.5. A EH é, essencialmente, se assim se pode dizer, presencialista, ou seja, está concentrada em viver o Aqui-e-Agora, sem esforço nem tensão, simplesmente em Atenção Permanente. Há uma história oriental também neste sentido:

 

 

“Após os seus dez anos de estágio, Tenno fez uma visita ao Mestre Tan-In.

 

Era um dia chuvoso; foi de tamancos e guarda-chuva. Logo que entrou, o Mestre perguntou-lhe: Os tamancos ficaram lá fora...? Diz-me, então, se os deixaste à esquerda ou à direita do guarda-chuva.

 

Tenno ficou confuso e sem resposta e concluiu que não fora capaz de praticar sempre, constantemente, uma Atenção Consciente. E decidiu passar com o Mestre mais dez anos...”

 

 

        O comentário a esta história é que “aquele que está sempre atento e consciente, totalmente presente a cada momento da vida, esse é o Mestre!”[5].

 

        Noutras palavras, a pessoa espiritual é aquela que vive o seu dia-a-dia com intensidade, como se fosse o último dia da sua vida. Está atenta ao que sucede à sua volta, mas também é consciente dos seus próprios pensamentos, sentimentos e emoções, dos seus próprios sentidos. Vive o Presente Eterno, ou a Eternidade do momento presente. Assim falaria alguém agnóstico ou ateu. Um cristão falaria de viver a Presença de Deus em cada momento e acontecimento. Mas, qualquer que seja a perspectiva, ambas vão dar no mesmo.

 

        A ideia é viver o céu na terra, o nirvana no samsara, o Macro no micro, “o lótus em fundo lamacento”. Não de escapar para um céu mais além, mas para viver o mais além no mais aquém. É este o repto da verdadeira Espiritualidade.

 

        Um provérbio zen dizia: antes de estudar o zen, a montanha era montanha e o vale era vale; depois que comecei a estudar zen, a montanha deixou de ser montanha e o vale deixou de ser vale; quando o satori (iluminação) chegou, a montanha voltou a ser montanha e o vale voltou a ser vale.

 

        Só quem teve esta vivência pode entender isto. “O que fala não sabe, o que sabe não fala”, dizia Lao-tse no Tao te King (Daodejing, LVI)[6].

 

5.6. A EH resulta, por isso, tremendamente vivencial.

 

        Vivencial contrapõe-se aqui a teórico, intelectual. É algo próprio da Vida, algo que se impõe por si mesmo, pela “lógica das coisas”, ou melhor, pelo “ritmo das coisas”, como diria o taoísmo.

 

        Sem prática quotidiana não há Espiritualidade, há Teoria da Espiritualidade. Também é boa a literatura espiritual, porque anima e tira dúvidas, mas vale mais dez minutos de prática de meditação para captar um pouco do que é realmente Espiritualidade...

 

        ‘Vivencial’ é algo do quotidiano. Contrapõe-se também a experiencial, algo situado no espaço-tempo, acumulação de experiências, acumulação de Passado. É preciso morrer ao Passado, para viver no Presente. Não é uma experiência mais, como a de alegria, ou tristeza, ou mágoa, ou esperança. É simplesmente estar, Ser. Não se programa. Acontece. Mas podemos prepararnos para que isso suceda. Prepararnos é limpar “os vidros sujos da janela, que não deixam entrar a Luz”, como escrevem as e os místicos de tradição cristã. Limpar os nossos apegos (a Abgeschiendenheit de que falava o Mestre Eckhart e o detachment dos budistas).

 

5.7. Assim, a EH resulta totalmente contemplativa. Não no sentido relativo, de opor contemplação a acção, que seria outro dualismo perverso. É absolutamente contemplativa.

 

        Mas o que significa isto? Isto significa que capta o ritmo das coisas, o Espírito que fala e age na história e na biografia. Que escuta o Silêncio, valha o paradoxo. Porque só no e desde o Silêncio é possível compreender a Vida mesma. Neste sentido é equivalente do não-agir (wu-wei) dos sábios taoístas. O não-agir é a suprema acção, aquela que age sem procurar agir. Ou melhor, é a acção espontânea, aquela que surge de dentro para fora, da nossa originariedade, da nossa autenticidade.

 

        Neste sentido, toda e todo espiritual são contemplativos/as, ainda que estejam no meio do tráfego contínuo da vida (“o olho do furacão”). O Karma-Yoga indiano ajuda-nos também muito bem a viver esta perspectiva. O Karma-Yoga é o Yoga da acção, a união com o Absoluto, com o Divino, através da acção de cada dia.

 

        Para isso é preciso ter em conta dois princípios:

 

(1)         O Espírito é o verdadeiro Agente

(2)         Devemos estar des-apegados dos frutos das nossas acções.

 

O que é que significa em concreto isto?

 

(1)         Significa que é Ele/Ela quem actua preferentemente. Nós somos só os instrumentos (bons ou maus) da sua Acção. Por isso é bom des-apegarnos das nossas próprias ideias, métodos, objectivos (o nosso ego), para saber escutar as iniciativas do Espírito. Isto não quer dizer que não pensemos, deixemos de ter juízo crítico das coisas, ou que não formulemos objectivos. Mas o fundamental é subordiná-los à Acção do Único Agente, o Espírito. Deixemos que seja Ele/Ela quem escreva a História... com a nossa colaboração, claro.

(2)         Para isso devemos agir, mas des-apegados/as até dos frutos das nossas acções. Como intervem na História uma multiplicidade de causas, a objectividade das nossas acções escapam das nossas intencionalidades iniciais. Assim, pode acontecer que uma acção que realizamos com boa intencionalidade e que até é objectivamente boa, possa tornar-se inoperante ou até voltar-se contra nós, ou ser mal-interpretada e fonte de posteriores conflictos. Por conseguinte, a actitude mental correcta de quem pratica Karma-Yoga é não ficarmos atados, dependentes, escravos do êxito ou não das nossas acções. Façamos a acção por ela mesma, pelo seu valor intrínseco, e não pelo seu reconhecimento social. A alegria de quem pratica Karma-Yoga é fazer a acção que devia ter feito, no momento oportuno, alegrar-se com o valor intrínseco da própria acção, e des-apegar-se do reconhecimento exterior, ou até do seu resultado.

 

        É preciso então muita liberdade interior e determinação para levar avante estes dois princípios do Karma-Yoga, o Yoga da Acção e do Dever. Tudo isto se inscreve perfeitamente dentro de uma Espiritualidade Holística.

 

 

5.8. Finalmente, ainda que não exaustivamente, pois haveria outras características mais, a EH é uma Espiritualidade da  Solidariedade.

 

        Não basta a libertação interior. É preciso também a libertação exterior, económica, social, política e cultural. É este um ponto, em grande parte, novo, na agenda das místicas do último século e do presente. A/o santo de hoje deverão ser também “santas e santos políticos”. Ou seja, preocupados, misericordiosa ou compassiva-mente, pelo sofrimento alheio dos seres humanos e do resto da Natureza, na medida em que são provocados por determinadas relações sociais.

 

        Para isso, o místico/a do século XXI, deve ter também uma formação técnica em ciências humanas e sociais, ou, em seu defeito, uma sensibilidade aguçada para os sofrimento alheio e a procura de soluções alternativas. Os poderes dominantes usam o engano da “alternativa única”, de dizer que utilizam a única alternativa racional possível, que, por exemplo, estão a seguir os ditados “da” Economia ou “da” Política, sem dizerem que essa é uma determinada Economia e Política, e que pode haver outras, sem dúvida mais solidárias.

 

        Assim, uma Espiritualidade Holística é uma Espiritualidade que promove desde dentro para fora, com enorme solidariedade por tudo o que existe, novos modelos de organização económica, social, política e cultural que levem a uma justiça, paz e harmonia totais, e não só ao benefício de alguns privilegiados ou capas sociais dominantes.

 

        E, mais do que solidariedade, a EH falará de identificação. Identificação com as e os mais pobres e oprimidos. É colocar-se no posto, na pele deles e delas, e sentir como próprias as agressões em contra da Humanidade e do Resto da Natureza.

 

        Neste sentido, o Advaîta Vedānta indiano dá-nos  umas boas pistas de compreensão. A ideia central desta filosofia-espiritualidade é da unidade de tudo. O seu principal filósofo foi Shankara (aproximadamente, entre 788 e 820 d.C.), ainda que houve outros formuladores, como Rāmānuja (aproximadamente, s. XII d.C.), de fundo mais teísta.

 

        Para Shankara, só o Absoluto, Brahman, é realmente existente, pois é o Único que Permanece. Tudo o resto é ilusão, maya, no sentido, em que não é permanente. Brahman (ou Atman, o Espírito) é unidade pura. A multiplicidade das almas e do mundo são aparência. Só o sábio compreende que esta aparente multiplicidade (que é própria do conhecimento relativo) não é, no fundo, senão uma expressão do Único Realmente Existente, que é Brahman. Assim, este conhecimento vivencial, mais do que intelectual, é o verdadeiro conhecimento, o conhecimento absoluto, aquele que verdadeiramente liberta.

 

        Pois bem, sem nos atarmos totalmente ao modelo ontológico do Advaîta Vedānta, mas inspirando-nos nele, poderemos, com a sua ajuda, interpretar de maneira profunda, a conhecida passagem evangélica da parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 29-37).

 

        Com efeito, a questão não é só que o Samaritano enternece-se, ou é movido a compaixão, pela situação do judeu assaltado e caído meio-morto ao lado do seu caminho. Não é só que o ajuda paternalísticamente, quando o normal seria, dado o ódio/desprezo étnico mútuos, e dada a incerteza da situação (podia ser uma armadilha para ser assaltado ele próprio por bandidos, tão frequente isto naqueles dias em Israel), que se fosse embora, escapando quanto antes desta situação incómoda e perigosa. Esta imagem ainda é própria de uma visão superficial e dualista (“eu me compadeço de outro, coitado!”).

 

        Mas, desde o ponto de vista de uma EH, eu sou o outro caído. Identifico-me com ele, porque ambos somos o mesmo. Sinto o que lhe aconteceu a ele, como se mo tivessem feito a mim próprio. Eu sou ele. Ele é eu. Somos uma unidade. Por isso, ajudo-me a mim próprio, ajudando o outro. E vice-versa. O sofrimento dele é o meu. E não posso soportá-lo! Levantando-o e tratando dele, eu me ajudo a mim próprio.

 

        (Entre paréntese, aqui estaria uma boa fundamentação também para qualquer trabalho profundo de solidariedade ecológica: “Eu sou a Natureza: o que lhe fazem a ela, fazem-me a mim próprio!”).

 

        Esta ideia da unidade de tudo, e, portanto, da identificação com o Cosmos e os seus sofrimentos, especialmente dos mais pobres e oprimidos, é, sem dúvida, a aposta mais radical da Espiritualidade Holística a nível social.

 

 

 

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        Ficamos por aqui.

 

        Somos conscientes de que tudo o anterior poderia ter sido mais desenvolvido e melhor explicado, mas esperamos voltar noutra ocasião sobre estas e semelhantes questões. De momento, aqui fica, na nossa opinião, o essencial do programa de uma Espiritualidade Holística para o século XXI.

 

        Calha-nos a nós fazê-la verdade, ou seja, vivê-la!

 

 

 

 rui manuel

lisboa

27.05.10.

 

 



[1] ANTHONY DE MELLO, O Canto do pássaro. Paulinas, Lisboa², 1998, p.39.

[2] A Realidade que captamos com a nossa mente-sentidos é dualista. De facto, a dualidade é uma construção mental, meramente operativa para trabalhar no meio da realidade empírica. Em último termo, a Realidade é una. Mas a multiplicidade é a maneira de manifestar-se a nós. Ou seja, é uma unidade dual ou unidade múltiple. Os Taoístas afirmavam que a realidade se nos apresenta como Yin e Yang, mas ambas, Yin e Yang, não são senão os dois braços do Um, o Tao, ou melhor, do Vácuo, que, como tal, transcende o Um. O Tao está para além do mesmo Um (o Vácuo original é o “útero” do Um e da posterior dualidade e multiplicidade, numa metáfora de acento heideggeriano). O Não Ser é a origem do Ser.

 

 

[3] Fazemos uma diferencia entre ‘experiência’ (que é espaço-temporal) e ‘vivência’ (mais além do espaço-tempo).

[4] É só numa ‘vivência transcendental’ que é possível “captar” a Totalidade. Só é possível no Silêncio total. Ou seja, no momento em que o ego, ou acumulação do passado, cessa, e ‘o novo’ surge (Jiddu Krishnamurti deu-nos boas “dicas” para “entender” isto). O Todo, “Aquilo”, surge quando acaba o Passado, ou seja, quando cessa a estrutura das nossas experiências passadas, dos nossos pensamentos, sentimentos e afectos acumulados, quer dizer, quando “acaba” o nosso ego, que não é senão uma construção social.

 

[5] ANTHONY DE MELLO, O canto do pássaro. Paulinas, Lisboa², 1998.

[6] Cfr. LAO TZU, Tao Te King, o Caminho da Virtude. Livros de Vida, Mem Martins², 2007, p. 121; LAO TSE, Tao Te King. Estampa, Lisboa, 6ª.ed. 2000, p. 69. Recomendamos, sobre filosofia taoísta, o livro de VV.AA., A filosofia “materialista” chinesa. José Galamba, Torres Novas, 1978.

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